Aqui o autor - Dieter Dellinger - ex-redator da Revista de Marinha - dedica-se à História Náutica, aos Navios e Marinha e apresenta o seu livro "Um Século de Guerra no Mar"
Sexta-feira, 22 de Fevereiro de 2008
Kyrenia

 


               

                   

A  antiga civilização grega caracterizou-se por um fenomenal tráfico marítimo que deixa ainda hoje toda a gente admirada. Assim, Atenas, por exemplo, no Século de Péricles e depois da guerra do Peloponeso importava anualmente cerca de 100 mil toneladas de trigo do Egipto, Creta e outras regiões mediterrânicas. Além disso, mantinha um tráfico intenso com a península itálica e, bem assim, com a longínqua Ibéria. E para além dos cereais circulavam nas rotas marítimas de então grandes quantidades do precioso mel que fazia as vezes do açúcar de hoje, porcelanas, armas metálicas, madeiras de construção, panos, peles, ferramentas e escravos. Das costas caucásicas do Mar Negro ao extremo ocidental do Mediterrâneo não havia costa e porto que não fosse visitado regularmente pelos navios atenienses e por muitos outros das restantes cidades portuárias gregas. Tanto com o propósito de transaccionar produtos como com outros objectivos como assaltar, roubar, etc., actividades normais e fundadoras da civilização urbana que deu origem a todos os valores que nos rodeiam. A cidade antiga, Roma por exemplo, como quase todas as cidades gregas, surge inicialmente como local inacessível destinado à guarda dos produtos resultantes do latrocínio provocado por pastores sem gado, camponeses sem terra e caçadores sem caça. Para o efeito, a urbe primitiva surgia em local acessível de longe e simultaneamente inacessível de perto, logo um monte junto a um vale ou cruzamento de vales, uma colina no fundo de uma baía ou perto de um rio ou limitado por pântanos que faziam reduzir o comprimento de uma frente defensiva. A civilização urbana nasceu mais em encruzilhadas de possíveis rotas marítimas que caminhos terrestres e começou no Mediterrâneo e Mar Egeu favorecida pela geografia insular e por costas bem providas de baías, enseadas e penínsulas com mar relativamente calmo, pelo menos no verão.

         Por isso, a questão fundamental para uma tal civilização marítima residia no navio. Que tipo de navio poderiam os atenienses possuir para navegar tão intensamente no Mediterrâneo e como podiam impulsionar tal navio. Os vasos gregos mostram frequentemente navios, mas quase sempre estilizados de uma forma bastante primitiva; naves de pano redondo arvorado num mastro inclinado e relativamente baixo, excessivamente bojudas sem leme, guiadas apenas por um remo de esparrela lateral numa das alhetas e sem remadores permanentes.

         O navio ateniense derivava, sem dúvida, da nave fenícia que também navegou muito no Mediterrâneo e terá chegado ao Tejo bordando a costa atlântica da Península. Mas terá evoluído para o transporte de bens em massa, já que são muitos os achados arqueológicos submarinos reveladores da presença de grandes quantidades de ânforas com vinhos, azeites ou trigos. A quantidade de depósitos encontrados mostram a existência de um tráfico marítimo extremamente denso que implicava navios bem melhores que aqueles que se admite como tendo existido na antiguidade.

         O mistério manteve-se até à descoberta, em 1967, dos restos bem preservados de um navio mercante.

O navio terá sido construído por volta de 400 antes de Cristo, tendo naufragado perto de Kyrenia na costa norte da ilha de Chipre.

Mergulhadores arqueólogos descobriram um casco de navio afundado há muito. Cerca de 60 por cento estava intacto com quase toda a quilha e parte da caverna, bem como restos importantes do forro exterior, nomeadamente da zona do encolamento, o qual era revestido por placas de chumbo que o protegeram das algas e moluscos durante cerca de 2 mil e quatrocentos anos.

A carga do navio ainda estava intacta, sendo constituída por algumas centenas de ânforas com vinho de Rodes e amêndoas, além de várias mós. As cerca de seis mil peças do navio foram estudadas ainda no meio líquido por cientistas e construtores navais, sendo medidas e desenhadas em todos os seus aspectos. Os arqueólogos norte-americanos Michel Katz e R. Stefy da Universidade da Pennsylvania elaboraram assim desenhos técnicos do navio com a perfeição de qualquer construtor naval moderno. O navio passou a denominar-se Kyrenia e verificou-se assim que media 14,75 entre as rodas da proa e da popa e 4 m de largura. O seu casco era relativamente bojudo e todo construído em madeira de cedro, apresentando uma proa bastante “moderna” e uma popa fechada terminada em roda alta. Deslocava cerca de 25 toneladas. O mastro de 11 metros de altura estava colocado no fim do primeiro terço do navio para arvorar uma vela trapezóide de 66 metros quadrados. Um leme de cadaste não existia, mas em sua vez dois remos de espadela, um a bombordo e outro a estibordo, nas respectivas alhetas e susceptíveis de serem guiados por uma só pessoa em simultâneo, pois estão ligados por uma barra comum.

         Entre outras particularidades da arquitectura naval do navio, salienta-se o costado bastante elevado. A tripulação seria constituída por um mestre, o timoneiro e dois auxiliares para servir a vela e os remos de espadela.

         Os achados arqueológicos do navio foram retirados do meio líquido para serem colocados em tanques nos quais se fez a substituição lenta da água por ceras poli-glicólicas. Até o açúcar dá para ocupar os espaços líquidos e impedir o desmoronamento da madeira em consequência da seca após quase dois milénios e meio de imersão. Os restos do navio estão em exibição num museu edificado expressamente no Castelo de Kyrenia.

         Mas, o mais interessante foi a construção de uma réplica perfeita. A obra foi levada a cabo pelo Instituto Grego da Tradição Náutica sob os auspícios da Ministra da Ciência e Cultura do então Governo socialista da Grécia, Melina Mercouri.

         No porto do Pireu, Melina Mercouri, também conhecida como actriz famosa, foi a madrinha do navio aquando do seu lançamento à água.

         Devidamente equipado segundo a tradição ateniense, o Kyrenia II realizou uma viagem inaugural de 600 milhas para repetir as navegações de há 2 mil e quinhentos anos pelas ilhas do Mar Egeu. Seguiu-se depois uma viagem de umas mil milhas.

         Já nos primeiros ensaios, os tripulantes puderam rebater a teoria de que os navios da antiguidade eram fracos de manobra e que as velas trapezóide não impulsionavam bem. Na verdade, revelou-se bem o contrário. Os dois remos de guiagem ligados à mesma barra mostraram ser excelentes meios de manobra e o casco obedecia primorosamente. Por outro lado, o Kyrenia II revelou-se um excelente veleiro capaz de navegar bem à bolina folgada e quase à bolina cerrada. Para além da grande vela trapezóide, envergada transversalmente, os gregos antigo utilizavam com ventos fortes duas velas triangulares envergadas na verga transversal que melhoravam muito a aerodinâmica do conjunto.

         A caverna de carga era espaçosa sem coberta de popa à proa. Um amplo tombadilho permitia a acomodação do timoneiro e do mestre, enquanto à proa uma coberta parcial protegia o navio da entrada de água pela proa.

         Enfim, uma boa embarcação que navegava quase tão bem como as naves vikings, das quais foi, sem dúvida, a inspiração. Os gregos não tinham aparentemente inventado o velame latino e só isso permite colocar o navio fora de um tipo evolutivo que chegou quase aos dias de hoje.

                

 Dieter Dellinger - Artigo publicado na REVISTA DE MARINHA

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Quinta-feira, 21 de Fevereiro de 2008
A Jangada Brasileira

                      

 


            Aquilo reflectia os raios solares, enquanto me aproximava célere num "buggy" pela areia molhada daquela infindável praia da costa cearense, no Nordeste brasileiro. Já perto, percebi  que o estranho objecto mais não era que uma prosaica carroçaria de automóvel de sucata instalada numa jangada do alto tão típica daquelas paragens. O resto da máquina moderna ia para o largo a fim servir de abrigo à fauna piscícula. A mais antiga máquina da humanidade, a jangada, transportava à vela o objecto essencial dos nossos dias. Uns cem mil anos de civilização separavam os dois instrumentos.

            Ao longo da excursão de quase uma centena de quilómetros pelas praias cearenses muitas foram as jangadas que vi na sua faina habitual de pesca ou já em descanso varadas naquelas areias luminosas que originam uma incrível paisagem dunar de vez em quando entrecortada por arribas arenosas multicolores ou lagunas interiores e riachos nesse Brasil gigante.

            Efectivamente, a mais primitiva das embarcações, nascida com o "Homo Sapiens" há dezenas de milhares de anos, continua nas costas brasileiras, e em poucos mais locais da Terra, a cumprir a sua função económica, neste caso a pesca e, nalgumas praias brasileiras, o transporte de turistas em cruzeiro.  É certo que a jangada brasileira não é a mesma de há décadas atrás, deixou de ser uns toros amarrados para dar lugar a uma construção naval em tábuas revestidas a aparelho, capa e subcapa. A jangada de hoje é um barco largo de fundo chato sem encolamento que se curva na zona da popa para albergar uma quilha terminada em cadaste de leme. A proa afia para cima de modo a reduzir a fricção no elemento líquido. Os bordos são baixos e fecham num convés soldado ao costado com pés de carneiro ao centro, fazendo da embarcação uma espécie de flutuador ou quase uma prancha de surf de dimensões maiores, completamente oca e inafundável. Move-se graças a uma vela triangular latina arvorada em mastro inclinado e envergada em carangueja. Usa o leme ordinário quando veleja e remo de espadela quando manobra nas lagunas ou vara na praia.

            Para bolinar, ou evitar o caimento, o jangadeiro utiliza um pranchão móvel que serve de patilhão.

            Uma prancha simples faz de assento ao tripulante, enquanto um grande cesto negro serve de depósito do pescado e noutro vai a linha e os anzóis com a chumbada e o isco.

            Só a chamada jangada do alto, a maior com mais de 8 metros de comprimento, é que recebe o nome de jangada. As mais pequenas são bote, risca, raso, rasinho, curuba, serrador, paquetê, catraia ou ximbelo. A denominação tem a ver com a forma como pescam ou pelos traços que deixam na areia. A pesca mais frequente é à linha com a embarcação fundeada em pesqueiro, denominada "pesca de pita", ou, então, é pesca de corso ou corrico, em brasileiro de praia, quando as espécies piscículas preiam a isca em movimento.   Quando os anzóis são encastoados em linha comprida sem chumbada chamam-lhe no Ceará "pesca de boiada ou de bubuia".  Por vezes lançam redes e até arrastam-nas de verga, mas a tendência para as boas capturas tem diminuído, tal como a utilização de tripulações numerosas em jangadas grandes. As jangadas maiores vão à "pesca de dormida", assim chamada por demorar mais de um dia no mar. Quase todas as embarcações que se vislumbram nas praias são de um único mestre. A existência de um ajudante, o coringa, é rara. Nas jangadas do alto vão em geral quatro tripulantes, o mestre proeiro, o rebique, segundo a terminologia do Ceará, ou bico de proa, na Baía, e os contrabicos.

            As jangadas mais pequenas dedicam-se à "pesca no raso", daí terem as embarcações o nome de rasos.

            - Trazem todo o tipo de peixe para terra, - diz o velho jangadeiro da comarca de Beberrique, de seu nome Jack Tuio, - desde o peixe-chato (linguado, solha, etc.) ao peixe-roda ou lua com uma nadadeira dorsal imensa de um azul prateado. Chegam a ter três metros de diâmetro e a pesarem mais de uma tonelada. Também é conhecido por bezedor, lua ou rodim.

            - O peixe mais abundante nas nossas águas,  - continua o Tuio, - não presta para nada. É o peixe-rei, pequenino com 8 cm, mas vem aí em cardumes gigantesco. Serve para ser comido por outros, mas arrasa o alimento vegetal dos outros peixes. Dele se alimentam as espécies carnívoras, principalmente o peixe-diabo ou pescador que atrai o rei com os seus filamentos, engulindo-o sem sair do fundo lodoso em que se esconde. È peixe-canibal, não serve para o homem comer.

            - Também há xarrocos, cabeçotes, peixe-serra e até voadores que chegam a saltar 200 metros.

            - Sabe, existem no Brasil umas dez mil jangadas que alimentam uma vasta população de pescadores das aldeias de praia e suas famílias. O custo relativamente baixo das embarcações e a sua facilidade de manobra permite a propriedade por parte do ou dos tripulantes sem intermediação de algum capitalista explorador. Muitos jangadeiros estão organizados em cooperativas de dimensão reduzida, dado não quererem alimentar o vício de burocratas improdutivos. O Ceará é, sem dúvida, o Estado jangadeiro do Brasil com mais de três mil unidades.

            Muito me ensinou o velho pescador,  senhor de verbo fácil com grande profusão de substantivos como todos os brasileiros,  avô do mini-guia que nos acompanhou na visita à comarca "litorânea" de Beberique, a sudoeste de Fortaleza, capital do Ceará.  Zona turística celebrizada pelas suas arribas areníticas de areias multicolores utilizadas na confecção de notáveis obras de arte metidas em recipientes de vidro, trabalho a que o velho Tuio se dedica agora. Em vernáculo cearense, dizia-me que as actuais embarcações não se comparam às antigas feitas de paus roliços tiradas de uma árvore que dá pelo nome de Cordia ligados entre si por cordame vegetal.  Os índios utilizavam este meio de transporte e que ele herdou dos seus avós o gosto e a arte da pesca em jangada, pois, como quase todos os habitantes do Ceará, é índio também, mas não puro, pois esses são poucos. Para os índios Tupis, a jangada era conhecida por "Piperi" e o nome luso vem do hindustani "janga" trazido pelos portugueses. Pero Vaz de Caminha chamava-lhes almadias.

            - Sabe, - acrescentou o Tuio, - o jangadeiro é um mestre na sua arte, conhece os fundos arenosos, as correntes, os ventos e os céus, prova a água para ver se está mais ou menos salgada e sabe a cada momento qual o peixe que há para um dado sabor e a que temperatura deve estar a água. É tudo experiência, mas mais que isso, vontade de aprender. Depois de encontrar um certo tipo de pescado, os novos devem examinar a água, provar-lhe o gosto, sentir a temperatura, saber se é água do fundo ou de superfície e que cor tem e de onde vem o vento e qual a direcção da corrente. Depois é fácil, em água igual volta a encontrar o mesmo peixe. O peixe nada aqui sempre na sua água, nunca a troca por outra, há uma água para cada espécie.

            E já apanhou algum gigantesco bezedor?  Perguntei-lhe timidamente.

            - Mais do que um, mas foi há anos. Em 1979, sim, recordo como se fosse hoje,  apanhei um orelhão, que é quase o mesmo que o bezedor, com mais de três metros de largura e uns cinco de comprido. Lutei horas com ele para o trazer de arrasto para a praia, bati-lhe vezes sem conta com a esparrela que ficou vermelha de sangue e rachou de alto a baixo. Quando varei não me podia mexer mais, tão cansado estava. O safado pesava mais de uma tonelada. Nunca esperei pescar um exemplar assim, mas a vida é "uma caxa de surpresas", nem fui capaz de medir e pesar a água do peixe para lá voltar.

            E tubarões, há para aqui? Já capturou algum?

            - Ao largo há muitos, mas o verdadeiro tubarão só aparece quando o mar cheira a melancia, parece mentira mas é verdade. Aqui perto há o peixe-serra, agressivo, mau e enorme, passa dos 4 metros. É  misto de tubarão e raia, gosta de ficar parado no fundo e quando está no fim da vida chega-se às jangadas para que adoptemos as rémoras que o acompanham sempre, limpando-lhes a boca e os dentes dos restos deixados de última refeição. Julgam que as jangadas são peixes irmãos e querem que os seus queridos parasitas continuem a viver depois da sua morte. Nos seus melhores anos atacam tudo, até os pescadores inadvertidos. Pior que eles só os pintadinhos, uns cações gigantes que gostam de dar uma violenta rabanada num jangada para a virar e abocanhar os tripulantes. Se não levarem logo uma violenta pancada de remo dão cabo de nós.

             Mas, enfim, amigo, os gigantes são cada vez mais raros, o que há aí é peixe miúdo e cada vez menos. Aqui ou no sertão nunca deixámos de ser gente de fome. Sabia que quando temos fome, vemos muito melhor. Um pescador que vá ao mar sem nada no estômago, vê bem até de noite. Não sabia?

            Podia ficar horas a ouvir o velho Tuio, mas não havia tempo, o autocarro esperava já por nós. Adeus amigo, índio brasileiro do mar. Até à próxima.

  

                     

 

Dieter Dellinger: Artigo Publicado na REVISTA DE MARINHA de Junho/Julho 2000.

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Sábado, 9 de Fevereiro de 2008
Dieter Dellinger: As Naus da Epopeia Portuguesa

 

 

           

 Albuquerque no chapitéu da nau, recostado numa cadeira de espaldar olhava a cidade toda azulada sob o luar e escutava o marulhar da água batendo no costado do navio; ali estava pois ela, a Ormuz desejada – escreveu Gomes da Costa em “Descobrimentos e Conquistas”.

            Pouco antes, “os navios negros, escalavrados pelo mar, as cobertas abertas pelo sol por onde penetravam nas câmaras e paióis os fortes aguaceiros que de quando em quando caíam” , chegaram à rada de Ormuz. A nau capitânia, a “Circe”, toda eriçada de canhões, fundeou frente ao Paço do Rei de Ormuz. As outras naus: a poderosa “Flor de La Mar” sob o comando do intrépido João da Nova, a “Rei Grande” de Francisco de Távora, a “Rei Pequeno” de Teles Barreto, a “S. Jorge” de Afonso Costa e a “Espírito Santo” de Nuno Castelo Branco, além de uma fusta armada em Scotorá, seguiam os movimentos da capitânia.

            No porto estavam mais de quatrocentas embarcações, entre as quais umas sessenta naus. Uma delas, a “Meiri” do Rei de Cambraia de 800 tonéis, mil homens de guarnição e inúmeros canhões; outra, de Diu não lhe ficava muito atrás em tamanho e equipamento. Muitas para seis naus portuguesas de tolda negra e rota. Albuquerque mandou um escaler dizer ao capitão da grande nau para ir ter com ele, pois se não fosse afundaria a nau. O capitão amedrontou-se e foi recebido por Albuquerque rodeado de homens de armas, bandeiras e sedas a tapar os buracos da sua nau. Intimou-o a dizer ao Grão-Vizir que governava Ormuz em nome do Rei de 15 anos de idade para se submeter ao poder de D. Manuel II, mas logo de seguido mandou o intérprete segredar ao assustado capitão que desejava que o Vizir recusasse a sua proposta porque a sua gente estava desejosa de travar uma batalha. O homem ficou espantado, seis pequenas naus contra sessenta e mais algumas centenas de “terradas”, pequeno navios a remos e com uma vela latina da época, algo semelhantes aos “Dhows” do Golfo Pérsico de hoje. Não utilizavam artilharia, levando apenas frecheiros.

            Durante todo o dia, não veio a resposta, mas houve movimento de gente de armas e as naus de Ormuz estavam a ser reforçadas com pessoal armado vindo de terra, enquanto a Armada de Albuquerque estava muito desfalcada de gente e grassava muito doença. O grande capitão-mor português não perdeu mais tempo.

            “Fogo” – bradou Albuquerque – e em breve fervia o combate. Os grandes navios vomitavam pelouros e os terradas lançavam nuvens de flechas. “O troar da artilharia era ensurdecedor” – escreveu Elaine Sanceau – “os portugueses, inteiramente cercados pelo inimigo, não cediam. Canhão contra canhões, eles eram melhores artilheiros e disparava com uma certeza devastadora”.

            “Uma hora ante manhã, Albuquerque mandou virar o cabrestante e foi-se a “Circe” aproximando da “Meiri” e logo que chegou à distância eficaz salvou-a com quatro peças grossas, cujos tiros a atravessaram, e com berços e falcões tanta gente lhe matou que os outros se refugiaram em baixo”.

            Os grandes canhões portugueses de bronze levavam a melhor sobre a artilharia de ferro que os turcos trouxeram para o Índico, enquanto os capacetes de ferro e as armaduras aguentavam quantas frechas eram lançadas. Todas muito juntas, as gentes das “terradas” deixavam-se matar como lebres pelos tiros dos portugueses e fugiram em grande número para terra.

            Albuquerque atrasou a abordagem das naus inimigas, preferindo destruir a maior parte delas com as suas bombardas de tiro baixo que chegava a fazer buracos abaixo da linha de água e só depois apresou vinte naus já quase abandonadas pelas respectivas guarnições.

            Quando as suas mostraram que queriam conquistar a cidade, os homens de armas refugiaram-se no perímetro murado a deixaram as naus abandonadas, tendo os homens de Albuquerque começada a largar fogo às mesmas. Como isso seria o fim da cidade de Ormuz que vivia do comércio marítimo, o Vizir rendeu-se e permitiu aos portugueses a construção de uma fortaleza, o que não foi possível acabar porque os capitães das restantes naus não queriam nada com fortalezas e alguns acabaram por desertar para Goa. Só passados sete anos é que Albuquerque voltou a Ormuz e conquistou a cidade sem um combate, tal o temor que inspirava a toda a gente da região.

            Sete anos após a chegada à Índia de Vasco da Gama, as naus de Albuquerque faziam de D. Manuel I o distante senhor dos mares. Mesmo após longos períodos de mar sob o sol tropical, as suas grossas bombardas destruíam os pesados galeões turcos, afundavam as naus de Cambraia e afugentavam as “terradas” do mouro.

 

                                     

 

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Publicado pelo autor na REVISTA DE MARINHA de Março de 1989

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As Naus de Vasco da Gama

 

 

Maquete do Casco da S. Gabriel

 

            A Armada de Vasco da Gama deverá ter sido formada pelos primeiros navios construídos expressamente a partir da experiência científica e prática de mais de meio Século de navegações atlânticas. O Plano da “S. Gabriel” e da “S. Rafael” foi riscado segundo as indicações de Bartolomeu Dias e João Infante e a construção processou-se no Lugar da Telha, próximo de Alhos Vedros e não na Ribeira das Naus como escreveram alguns historiadores. Deslocavam respectivamente 120 e 100 tonéis e foram acompanhadas pela Caravela Redonda (ou Nau) S. Miguel, impropriamente denominada Bérrio, nome do seu proprietário, e por um Nau de carga de 200 tonéis comprada a Aires Correia de Lisboa para o transporte de mantimentos.

            Na altura, utilizava-se como unidade de medida volumétrica o tonel de 7 palmos de altura e 5 no maior diâmetro, pelo que a tonelagem se referia à quantidade de tonéis transportados no porão. Segundo Brás de Oliveira, “junta-se 1/5 à tonelagem então indicada e obtém-se a correspondência actual.

            Para o mesmo autor, a “S. Gabriel” media de comprimento 19 m desde a ré à vante, contando os lançamentos da roda e cadaste na altura da coberta e 6 m de boca na casa-mestra, a qual andaria pelos 1,5 m para vante do meio da quilha. Por sua vez, o comandante Baldaque da Silva está de acordo com Brás de Oliveira no comprimento, mas diz que a boca na sua maior largura media mais 2,5 m, ou seja, 8,5 m e o pontal a meio da quilha tinha igualmente mais 2 m que nos cálculos de Brás de Oliveira. A “S. Gabiel” seria pois muito mais bojuda, mais mercante; lenta para os nosso tempos, mas rápida para a época. Provavelmente nenhum veleiro ultrapassaria a “S. Gabriel” durante dois Séculos; pelo menos até ao aparecimento das fragatas de 1750 ou pouco antes.

            O pano de treu (linho) usado nos tempos de D. Manuel I, anterior à lona, não permitia a confecção de velas redondas ou quadrangulares com mais de 500 metros quadrados e latinas com mais de 300. Nesse aspecto, a “S. Gabriel” estava muito aquém das naus que lhe sucederam na rota da Índia; a sua vela maior deveria ter uma área de uns 182 m2 .

            As naus de Vasco da Gama andavam mal de bolina cerrada. A verdade é que as Caravelas latinas da época também não navegavam muito bem à bolina, isto é, com ventos contrários, apesar de serem melhores neste aspecto que os navios ditos redondos.

            A vela quadrada permitiu mais tarde bolinar com a técnica de rodar as velas do mesmo mastro em ângulos diferentes, daí a sua presença em todos os grandes veleiros até aos dias de hoje nos navios-escola.

            Em 1497, as naus eram ainda navios das descobertas; não dispunham de um roteiro preciso nem de uma meteorologia empírica sobre ventos, correntes e estações austrais. Daí serem equipadas com o máximo de abastecimentos e acessórios possíveis. Só andainas de pano eram três, além de âncoras e amarras para substituir as que se perdessem e tantas bombardas, pólvora e pelouros como nenhum navio recebera ainda. Segundo Chaunu, a Armada de Vasco da Gama levava víveres para três anos e seis meses, ou seja, 2.600 kg por homem. A ração diária compreendia aproximadamente libra e meia de biscoitos por dia, meia libra de carne ou peixe salgado, algum arroz ou legumes secos, um litro de água doce e ¾ de vinho, tudo muito bem registado pelo escrivão da Nau. Posteriormente estabeleceu-se como norma geral uns 600 a 700 kg de mantimentos por homem na Carreira da Índia.

            Apesar dos cuidadosos preparativos, dos 148 tripulantes da Armada de Vasco da Gama só regressaram 55. Todavia, a venda carga na Casa da Guiné e da Índia cobriu 60 vezes as despesas feitas.

 

 

            A introdução do canhão a bordo era muito recente quando Gama partiu para o Índico. A “S. Gabriel” e a “S. Rafael” dispunham cada uma dez peças de artilharia de bronze por bordo, sendo 4 canhões na tolda, 3 bombardas na alcáçova e 3 sob o castelo da proa. Estas bombardas ou canhões de grosso calibre foram verdadeiramente a origem do poder português nos mares asiáticos. Então, os portugueses inventaram as portinholas de artilharia no costado e a própria disposição e amarração das peças. O cartucho de pólvora foi uma ideia de Vicente Sodré, tio de Afonso de Albuquerque, que para aumentar a cadência da artilharia resolveu ensacar previamente a pólvora para ser colocada logo que a alma do canhão tivesse sido arrefecida e limpa de restos de pólvora com escovilhões adequados, em vez de a lançar a granel como se fazia então. Claro está que os ingleses e holandeses têm a mania que inventaram isso tudo, revelando a mais inconcebível ignorância e refiro-me a alguns historiadores de prestígio que são um exemplo de incompetência total, mesmo perante simples amadores de boa fé sempre que se trata da historiografia portuguesa.

 

                         

 

Publicado por Dieter Dellinger na REVISTA DEMARINHA Nr. 53 de Março de 1989

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A Grande Nau da Carreira da Índia

 

            Nos grandes navios de quatro mastros que em 1514 navegavam regularmente para a Índia surgiram pois muitas inovações técnicas. Por volta de 1500, os portugueses inventaram os turcos de ferro para manobra das âncoras. A partir de 1520 as popas passaram de redondas a quadradas, permitindo abrir portinholas para os guarda-lemes. Três anos depois surgiram as naus de costado liso a substituir o tradicional trincado, menos resistente. Os portugueses utilizaram pela primeira vez os pregos de ferro no fabrico das caravelas e naus e daí a possibilidade de fazerem costados lisos.

            O tamanho das naus não parou de aumentar; dos 120 tonéis da “S. Gabriel” chegou-se à nau de mais de 2 mil toneladas e 110 peças, já no fim do Século XVIII. As últimas naus do tempo de D. Manuel I deslocavam 400 toneladas e atingiram as 900 toneladas durante o reinado de D. João III. Todavia, a ineficácia das naus excessivamente grandes era reconhecida, pelo que o Regimento de 1570,determinado por D. Sebastião, proibia naus da carreira da Índia com mais de 400 toneladas. Para iludir o regimento elevava-se os castelos da popa e da proa.

            A nau típica da Carreira e das armadas de Albuquerque era em geral de 400 toneladas. Antes do aparecimento dessa maravilha bélico-naval que foi o galeão português, as naus acompanhadas de algumas caravelas fundaram o primeiro império europeu na Ásia. A guarnição tradicional de uma nau de 400 toneladas oscilava entre as 120 e as 168 almas, contando-se obrigatoriamente um capitão, um escrivão, dois pilotos, mestre de manobra das velas, contramestre, guardião, capelão, carpinteiro, calafate, tanoeiro, barbeiro que servia de cirurgião, meirinho, cozinheiro, dispenseiro e vários soldados e bombardeiros, além de marinheiros e grumetes.

            A Nau de 550 a 800 tonéis é típica dos Séculos XVI e XVII. Tal como as suas antecessoras apresentava três cobertas, pelo menos. Na primeira jogava a artilharia; à ré localizava-se a tolda do capitão e os camarotes com janelas e, por vezes, varandins. Na segunda coberta ficavam os lugares (mais tardes denominados beliches) da tripulação; na terceira estavam os paióis da pimenta e à popa os das drogas – escreveu Oliveira Martins em “Portugal nos Mares”.

            À popa e à proa erguiam-se castelos artilhados com peças de menor calibre fundamentalmente anti-pessoal como os “berços” e os “falcões” com a particularidade de serem carregadas pela culatra, utilizando uma câmara móvel que lhe conferia um excelente ritmo de fogo acompanhado pela produção de muito fumo, pelo que estavam instaladas no exterior em especial nas balaustradas dos encastelamentos numa espécie de forquilha que permitia uma grande manobralidade e arco de fogo, disparando pelouros de pedra, revestidos ou não de chumbo ou de ferro. De algum modo foram os antecessores de todas as armas modernas de fogo. Acrescente-se que os grandes canhões ou reparos das cobertas não permitiam fazer pontaria; a manobra do próprio navio é que servia para apontar reparos de duas rodas grandes cujo recuo era sustido por um forte sistema de cabos. A batalha era sempre travada com os navios em paralelo a dispararem uns contra os outros a distâncias um pouco superiores a 100 metros.

 

 

 

A vantagem dos portugueses no primeiro Século do Império relativamente aos navios de todos os outros países e nos seguintes relativamente às armadas de Oman, Cambraia, etc. consistia na excelência da construção. Os portugueses foram os primeiros a utilizarem pregos para pregarem o tabuado do casco, enquanto o Norte da Europa utilizava cavilhas de madeira em tábua sobrepostas. Também a calafetagem portuguesa era de grande qualidade; as naus da Flandres usam uma só estopa e mal conseguiam chegar a Lisboa sem terem de ser carenadas e calafetadas de novo, enquanto as portugueses aguentavam bem os mais de seis meses de viagem até Cochim ou Goa, pois os portugueses e espanhóis foram os primeiros a utilizar chumbo nas costuras das naus e aplicavam, além da estopa, a pasta “galagala” constituída por cal virgem, estopa amassadas com azeite o que dava um betume que revestia o interior do forrado de duas tábuas. Uma espécie do pladur dos nossos dias. Além disso, os mestre portugueses cobriam o costado de breu ou alcatrão. Para o obter queimavam-se pinheiros em fornos semelhantes aos da cal, deixando-se escorrer a resina para um depósito colocado no fundo do forno, um fosso onde era carbonizada a madeira. Ao resíduo pastoso obtido chamavam alcatrão que depois costumava ser cozido com vinagre coalhado que adquiria o nome de breu. As opiniões variavam entre o que era melhor, o alcatrão ou o breu, mas eram estas pastas impermeabilizadoras que davam a tonalidade negra às naus lusitanas. Claro, o melhor breu provinha da Alemanha ou do norte de Espanha, sendo o da Biscaia. Os pinheiros alemães davam a melhor resina para o efeito, mas os alemães quase não faziam naus. Segundo a historiadora Leonor Freire Costa, entre 1498 e 1505, Lisboa importou 4.778 barris de alcatrão e breu.

            As naus portuguesas era calafetadas com estopa de linho ou cânhamo que, segundo o Padre Manuel de Oliveira, incha bem com a água e absorve o sebo. Os velhos cabos das naus regressadas das Índias eram frequentemente desfiados em casa por mulheres pobres de Lisboa para fazer estopa.

 

            Nas naus portuguesas, e não só, o lugar do capitão era o chapitéu e o grito de combate: “Jesus! S. Tomé!Ave-Maria!.

            Sob a coberta, junto ao paiol estava o capitão de fogo a distribuir a pólvora que tirava às gamelas ou ensacada dos caldeirões defendidos do lume por colchas e cobertores molhados.

 

            De 1497 a 1612, o Estado português armou para a Índia 806 naus, - diz-nos ainda Oliveira Martins.  Desses navios, regressaram 425, arribaram 20, perderam-se 66, foram tomadas pelo inimigo 4, queimaram-se 6 e ficaram na Índia 285. Portanto, só cerca de 10% é que se perderam verdadeiramente, sem contar com as que ficaram na Índia e que tiveram destinos diversos, principalmente nos combates travados. As naus podiam com ventos muito favoráveis atingir velocidades de 8 a 10 nós, mas em média uma Armada da Índia fazia todo o percurso a uma média de 2,5 nós durante seis meses ou mais.

 

            Os portugueses eram, sem dúvida, os melhores construtores de naus nos Século XVI e XVII, tendo algumas delas chegado a dobrar o Cão da Boa Esperança dezenas de vezes ao longo de vinte e cinco anos como aconteceu com a célebre “Chagas” que levou ao Índico quatro vice-reis. As “Décadas” de Diogo de Couto contam muitas das suas proezas, mas com muito exagero pois chga a falar em duzentas voltas pelo Cabo, o que só seria possível em mais de um Século de vida da nau.

 

            Na realidade, o tempo de vida médio das naus do Século XVII variava entre três ou quatro anos. As primeiras naus duraram mais como a “Circe” e a “Flor de La Mar”, já descrita neste blog.

            O verdadeiro declínio na construção das naus verificou-se com a perda da independência com a dinastia dos Habsburgos que privatizaram a carreira da Índia com a formação da “Companhia das Índias”. Em 1631, a referida companhia despachou para a ìndia as naus “N. Senhora de Belém” e “N. Senhora do Rosário” tão mal construídas que não conseguiram dobrar o Cabo da Boa Esperança. “Os interesses privados não eram capazes de prover as naus com mantimentos suficientes, nem sequer equipamento náutico”, queixou-se então amarguradamente o almirante António de Saldanha. Em 16636, a Companhia das Índias fechava por falência.

 

Publicado por Dieter Dellinger na REVISTA DE MARINHA Nr. 789 de Março de 1986.

 

 

 

 

 



publicado por DD às 23:21
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